10 de mai. de 2007

Aspectos históricos da pesquisa genética em atletas e a participação do Comitê Olímpico Internacional

Ramirez, A. Aspectos históricos da pesquisa genética em atletas e a participação do Comitê Olímpico internacional. In: Universidade e Estudos Olímpicos: Seminários Espanã-Brasil 2006. Moragas M & DaCosta L (orgs). Centre d'Estudis Olímpics UAB, Barcelona, 448-457, 2007.


Lately genetics has been more than a science of human inheritance. It has been providing us with knowledge and biotechnology tools to understand gene behavior and functions. In humans it has been specially providing perspectives to the development of human gene therapy. However, it has also been offering conditions to the development of the so-called gene doping in sports: an unappropriated use of gene therapy. This chapter briefly outlines gene doping, historical attempts and intervenient factors to the development of genetic research in sport participants and athletes, and design some perspectives to understand genetics as a helpful science in the future of sport. In addition, the role of the International Olympic Committee in the recent developments of genetics issues is analyzed.

A Genética que, além dos fenômenos da hereditariedade atualmente se incumbe do estudo do comportamento e das funções dos genes, tem prestado uma série de benefícios à humanidade desde o início do século passado, quando os experimentos de Mendel foram compreendidos. Nos seres humanos os benefícios se estenderam à compreensão da transmissão das informações genéticas entre os povos, principalmente das responsáveis por síndromes cromossômicas e doenças genéticas. Recentemente o mapeamento dos genes humanos (HGP, 2006) impulsionou os estudos de expressão dos genes ampliando as perspectivas para as terapias gênicas. Em contrapartida, tais pesquisas também têm proporcionado ferramentas para o desenvolvimento do recém denominado doping genético pelo esporte (Ramirez e Ribeiro, 2005).

O termo doping genético, definido como a utilização não terapêutica de células, genes, elementos genéticos ou de modulação da expressão gênica com capacidade de melhorar o desempenho esportivo, foi estabelecido pela Agência Mundial Anti-Doping em 2002 e se oficializou por ocasião da atualização de 2003 da lista proibida (WADA, 2006a). No âmbito da genética clínica, apesar de pouco sucesso documentado, e de algumas intercorrências, a terapia gênica tem se revelado como uma crescente influência no paradigma clínico para o tratamento de doenças herdadas e não herdadas. Os protocolos de terapia gênica vêm sendo desenvolvidos desde 1990 (Culver, 1996) consistindo basicamente em introdução de genes normais responsáveis por produtos terapêuticos, ou de células geneticamente modificadas, com a finalidade de bloquear a atividade de genes prejudiciais, de ativar mecanismos de defesa imunológica, ou ainda de produzir moléculas de interesse terapêutico (Nardi & Ventura, 2005). Portanto, doping genético seria o uso inapropriado de terapia gênica visando o aumento do desempenho esportivo.

De fato a Comissão Médica do Comitê Olímpico Internacional começou a se preocupar com a possibilidade de haver alterações gênicas como doping no esporte em 2001(COI, 2001). Naquele ano o COI submeteu a questão à apreciação da Agência Mundial Anti-Doping (WADA, 2001a,b) que, por sua vez, organizou dois simpósios com o apoio do COI. O primeiro nos Laboratórios Cold Spring Harbour em Nova Iorque em 2002 e o segundo em Estocolmo, com a colaboração do Instituto Karolinska e da Confederação Esportiva Sueca em 2005 (WADA, 2006b). Atualmente a WADA têm solicitado apoio aos geneticistas na elaboração de técnicas que visem o anti-doping genético. Porém, como o foco principal dos geneticistas é o desenvolvimento de terapias gênicas, e não exatamente atender a demanda esportiva, a questão ainda é recebida com certa resistência pela maioria destes pesquisadores.

Realmente são poucos os geneticistas envolvidos com as questões esportivas e poucos os trabalhos já realizados nesta área em comparação com as outras sub-áreas da genética humana (Ramirez & DaCosta, 2006). Pressupõe-se que, pelo menos em parte, o escasso desenvolvimento da pesquisa genética no Esporte também se deve à incompreensão da aplicabilidade da mesma como Ciência pelo Esporte até o presente momento.

Entretanto, em 1967, estabeleceu-se pioneiramente na história olímpica o Programa de Genética e Biologia Humana. Ele foi desenvolvido com os esforços colaborativos do Comitê organizador do 19º Jogos Olímpicos e da Comissão Nacional de Energia Nuclear do México com o apoio do COI e da Federação Internacional de Medicina do Esporte (DeGaray et al., 1974). Geneticistas de diversos países foram convidados a participar de simpósios que definiram os seguintes objetivos para o programa: 1) investigar a genealogia esportiva dos atletas, 2) investigar os traços genéticos relacionados às habilidades esportivas, 3) investigar a interação entre genética e fatores ambientais envolvidos no treinamento, 4) aplicar os resultados destas investigações na compreensão da biologia e da genética humana, 5) aplicar os resultados à detecção de talentos esportivos.

Para atingir estes objetivos foram utilizados os testes disponíveis pela Genética Médica à época, tais como: reação gustativa à feniltiuréia (sensibilidade ao PTC), tipagem sanguínea, dermatoglifia e citogenética. Porém, apesar dos resultados interessantes sob o ponto de vista científico, eles se revelaram ineficazes para atender às expectativas do Esporte, principalmente quanto à detecção de talentos esportivos. Este deve ter sido um dos principais motivos que levou ao desinteresse em se realizar novas pesquisas genéticas nas Olimpíadas subseqüentes.
Outro fator interveniente do avanço da pesquisa genética nesta área é a própria natureza das características genéticas que constituem o fenótipo atlético. Trata-se de características condicionadas por mecanismos de herança multifatorial. Isto significa que uma determinada característica atlética, responsável por contribuir para um bom desempenho esportivo, é determinada por vários genes que estão sujeitos à ação ambiental. A figura 1 ilustra esta inter-relação entre a constituição genética, o ambiente e o desempenho esportivo. Devido a esta complexidade a pesquisa genética humana baseia-se na aplicação de biomarcadores para avaliar as características genéticas e a relação destas com o ambiente, objetivando a compreensão do fenótipo desejado que, neste caso, seria o desempenho esportivo.









Fig.1 - Inter-relação entre a constituição genética, o ambiente e o desempenho esportivo. O uso de biomarcadores, principalmente em estudos epidemiológicos, pode contribuir para a compreensão desta inter-relação.

Um aspecto que requer consideração especial é a dificuldade enfrentada pelos geneticistas de estabelecer biomarcadores eficientes a fim de separar os viézes ambientais em pesquisas que envolvem herança multifatorial. Entretanto, apesar desta dificuldade, a literatura revela algumas iniciativas em pesquisas que se sucederam ao Programa de Genética e Biologia Humana. A pequena revisão de von Bracken (1972) apresenta alguns estudos sobre a genética do rendimento desportivo, Jokl & Jokl (1968) escreveram sobre os aspectos determinantes da condição atlética e Kovar (1980) sobre os aspectos genéticos envolvidos nas habilidades motoras.

Contribuições mais voltadas para o ambiente olímpico foram os artigos apresentados no Congresso Olímpico de 1984 sobre esporte e genética humana organizados por Malina & Bouchard (1986). Importante ressaltar ainda, o incentivo financeiro do COI ao grupo de pesquisadores liderados por Klissouras no desenvolvimento da pesquisa sobre os limites genéticos da performance esportiva em atletas gêmeos (Parisi et al., 1998). Os gêmeos univitelíneos revelam a distinção entre as características genéticas herdadas e as ambientais. Com o objetivo de compreender o papel do genótipo nas respostas cardiovasculares, metabólicas e hormonais ao treinamento aeróbico foi criado o programa HERITAGE (Bouchard et al., 1995) que analisou biomarcadores fisiológicos tais como consumo máximo de oxigênio, freqüência cardíaca, lactato sanguíneo, glicose, lipídios plasmáticos, lipoproteínas, hormônios esteróides e glicocorticóides plasmáticos entre outros, em 130 famílias. Os resultados deste programa se desdobraram em vários artigos subseqüentes e na elaboração de livros sobre genética, atividade física, performance e saúde (Bouchard et al., 1997; Bouchard et al., 2006). Não obstante, este mesmo grupo de pesquisadores tem compilado dados de pesquisas genéticas compondo um mapa dos genes relacionados aos fenótipos de desempenho físico e saúde (Rankinen et al., 2001). Este mapa tem sido anualmente atualizado.

Atualmente os próprios genes e seus produtos têm sido empregados como biomarcadores em pesquisas genéticas humanas. Por isto os genes EPO, GDF-8 e IGF-1 e suas respectivas proteínas eritropoietina, miostatina e hormônio de crescimento semelhante à insulina (Ramirez, 2005), poderiam ser utilizados como biomarcadores a serem estudados em atletas ao invés de serem vistos apenas como fortes candidatos ao doping genético.

Considerando a situação atual do doping genético, e as perspectivas da genética de modificar o esporte (Miah, 2004), parece que o desenvolvimento de pesquisas nesta área, paralelamente às discussões éticas, será fundamental para o futuro do Esporte. Além disto, tais pesquisas podem ajudar a embasar o acompanhamento médico longitudinal de atletas visando um esquema antidoping preventivo, identificar atletas sob o risco de desenvolver doenças genéticas tardiamente, auxiliar no desenvolvimento de terapias gênicas para recuperação de tecidos de regeneração lenta, e a compreender processos genéticos envolvidos com a promoção e manutenção da saúde humana de um modo geral.


Referências
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